Acad. Paulo Lockmann (Cadeira 38)
Expresso primeiramente minha alegria em poder contribuir neste momento histórico de tributo à Reforma de Luterana no cumprir de seus 500 anos. Promoção apropriada e feliz da Academia Evangélica Brasileira de Letras. Como Acadêmico em certa medida ausente por residir fora do Rio de Janeiro, mas profundamente grato pelo ministério que esta instituição realiza sob a liderança do Rev. Guilhermino Cunha e demais membros da direção.
A autoridade da Bíblia na tradição da Igreja anterior a reforma breves considerações.
“ Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. ” ( Atos 17,11)
Este registro chama a atenção e nos faz concluir que já na Igreja Primitiva havia os que davam a Bíblia maior autoridade que outros , Igrejas mais bíblicas e outras nem tanto. Na verdade sem Bíblia não há cristianismo. Desde o inicío as igrejas ainda no I século liam e interpretavam textos bíblicos em seus cultos como Palavra de Deus , o sermão de Pedro no dia de Pentecostes é um dos exemplos disto , Pedro explica o que estava ocorrendo a luz da palavra do Profeta Joel. Já no século II os cristãos tinham o Antigo Testamento como sua Bíblia . A parte o cisma marcionita não se duvidava da autoridade da lei dos escritos e dos profetas , guardadas as dúvidas sobre algumas literaturas deutero-canônicas que não menciono . Mesmo sem que o NT tivesse totalmente formado a Igreja começou a reconhecer a literatura produzida pela tradição Apostólica. Os Evangelhos e as cartas de Paulo, Pedro e João foram sendo reconhecidas como livros inspirados e critério de autoridade para vida da Igreja.
Quando a Igreja fechou seu Canôn, e mesmo durante este processo, a Igreja sempre colocou o NT após o os textos do AT, reconhecendo a natureza inspirada da Bíblia judaica, tampouco interferiu no conteúdo judaico da mesma, nem mesmo quando para determinados textos tinham uma releitura cristã como bem aponta Mateus ao recuperar a fala de Jesus dizendo : “ Ouvistes o que foi dito eu porém vos digo ...” Para a Igreja a Bíblia judaica se tornou como no judaismo, Palavra de Deus.
Os Pais da Igreja, todos eles se empenharam por prosseguir no reconhecimento da autoridade Apostólica como uma continuidade da revelação de Deus desde o Antigo Testameento. Do mesmo modo a obra clássica, mas posterior de Eusébio de Cesaréia, abre sua obra “História Eclesiàstica” com citações do Pentateuco e de Josué ilustrando o fundamento bíblico da herança apostólica.
A preeminência de Roma e a autoridade das Escrituras.
Já no segundo século Roma por razões históricas e políticas assume uma notória liderança para a Igreja do Ocidente , exemplifica isto Clemente Romano em seus escritos ao revindicar autoridade a si como sucessor dos Apóstolos e como lider da Igreja em Roma . Para isto foi enfatizada o martirio de Pedro em Roma assim como de Paulo. Junto a isto foi se consolidando o conceito e fortalecimento do magistério da Igreja e sua tradição como critério hermenêutico para juizo e doutrina da Igreja. Esta posição da Igreja Católica foi contra a qual Lutero se rebelou . Para falar desta posição nada como um Bispo Católico . Dom Estevão Bittencourt se expressa sobre o tema da tradição oral da Igreja e diz : "Sem a Tradição oral, não se pode definir o catálogo sagrado, pois em nenhuma parte da Escritura está escrito quais os livros que, inspirados por Deus, a devem integrar. É preciso procurar a definição dos livros sagrados fora da Escritura: na Tradição. Ora Lutero e o Protestantismo recorreram a tradição dos judeus da palestina, enquanto a Igreja Católica, seguindo o uso dos Apóstolos, optara pela tradição dos judeus de Alexandria. " Por isto os católicos incluem outros livros no Antigo Testamento, Tobias, Macabeus etc.. E por consequência a tradição adquire a mesma autoridade da Bíblia.
Entre a Hermenêutica Católica e a de Lutero e o Protestantismo.
Das Teses de Lutero: Sublinho apenas algumas que ratificam como Lutero contesta a autoridade do Papa e da Tradição como autoridade equiparada à Bíblia.
“18 Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor. 19 Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.
20 Portanto, sob remissão plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs. 21 Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa. 22 Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.”
Vejamos então como se detalha a hermenêutica reformada segundo Lutero. O eixo hermenêutico através da inversão do sujeito hermenêutico, Igreja e Tradição são suplantados pela Bíblia, ou seja, afirma-se a partir da Reforma : A Igreja não determina o ensino das Escrituras, mas sim as Escrituras determinam o que a Igreja deve ensinar. Então vemos que o caráter fundamental da exegese bíblica adquire dois princípios fundamentais: 1) A Escritura é interprete de si mesma; 2 ) Toda exposição e compreensão da Escritura está em conformidade com a analogia da fé . E para Lutero a analogia da fé era o mesmo que analogia da Escritura, ou seja o uniforme ensino das Escritura.
Esta postura foi consagrada por Lutero na famosa Dieta de Worms que reproduzo aqui:
Nela Lutero fez severas críticas à Igreja Católica quanto à cobrança de indulgências, o protecionismo e pouco acesso à Bíblia e a práticas religiosas infundadas. Também foi o responsável pela tradução da Bíblia, em latim, para o alemão. Por ser escrita em latim, somente o clero tinha acesso às Sagradas Escrituras e Lutero defendia que a leitura da Bíblia era para todos. Lutero reuniu todas as suas críticas em um documento intitulado “As 95 teses”.
Em 1520, o papa Leão X, incomodado, escreveu um documento exigindo a retratação de Lutero, sob pena de sua excomunhão. Em praça pública, Lutero respondeu ateando fogo ao documento do papa. Foi instaurada uma crise política na Alemanha. Lutero foi convocado a se retratar.
Quando chegou à Assembleia, Lutero foi apresentado a seus livros, expostos sobre uma mesa. Quando perguntado se os livros eram de sua autoria, respondeu que sim. Foi submetido à segunda pergunta: “Concordas com o conteúdo ali escrito ou quer se retratar?”. Lutero, ressabiado, pediu um tempo para responder. Foi lhe concedido prazo de 24 horas. No outro dia, Lutero respondeu: “A menos que possa ser refutado e convencido pelo testemunho da Escritura e por claros argumentos (visto que não creio no papa, nem nos concílios; é evidente que todos eles frequentemente erram e se contradizem); estou conquistado pela Santa Escritura citada por mim, minha consciência está cativa à Palavra de Deus: não posso e não me retratarei, pois é inseguro e perigoso fazer algo contra a consciência. Esta é a minha posição. Não posso agir de outra maneira. Que Deus me ajude. Amém!”. Por tudo isto tornou-se o responsável pela tradução da Bíblia, do latim, para o alemão. Por ser escrita em latim, somente o clero tinha acesso às Sagradas Escrituras e Lutero defendia que a leitura da Bíblia era para todos. Lutero reuniu todas as suas críticas em um documento intitulado “As 95 teses”.
Considerações decorrentes deste retorno às Escrituras
“Por esta razão, importa que nos apeguemos, com mais firmeza, às verdades ouvidas, para que delas jamais nos desviemos. Se, pois, se tornou firme a palavra falada por meio de anjos, e toda transgressão ou desobediência recebeu justo castigo, como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande Salvação! A qual, tendo sido anunciada pelo Senhor, foi-nos confirmadas pelos que a ouviram?”
“Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim”(Jo. 5,39).
O apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo, disse: “... prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas.” (2Tm 4.2-4). Paulo estava preocupado com a sã doutrina. Mas o que é a sã doutrina? Para responder a esta pergunta, há alguns dados claros na carta a Timóteo que nos servem de orientação.
Primeiramente, Paulo estava preso em Roma (cf. 2Tm 1.8; 16-17), além disso, triste, porque alguns o haviam abandonado (cf. 2Tm 1.15; 4.14-16); e, ao que parece, não havia esperança de libertação (cf. 2Tm 4.16-18). Ao que tudo faz crer, os que o abandonaram, nem todos o fizeram por medo da prisão, mas porque se desviaram da fé e do ensino doutrinário de Paulo; seria o caso de Demas, ou ainda de Himeneu e Fileto (cf. 2Tm 2.17; 4. 10). Por isso, Paulo aconselha a Timóteo a permanecer na fé sem fingimento que já existia em sua avó Lóide, e em sua mãe Eunice, e assim apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, e que maneja bem a palavra da verdade. E isso Timóteo faria primeiramente reavivando o dom de Deus, que estava nele, recebido através da imposição das mãos do apóstolo Paulo. Paulo valorizou a tradição apostólica, sentiu-se parte de uma história e de uma só Igreja, submetendo-se à autoridade da Igreja em Jerusalém (cf. Gl 1.18-19; 2.8-9).Por isto disse: “Não te envergonhes, portanto, do testemunho de nosso Senhor, nem do encarcerado, que sou eu; pelo contrário, participa comigo dos sofrimentos, a favor do evangelho, segundo o poder de Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as suas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada por Cristo Jesus, antes dos tempos eternos, e manifestada agora, pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho, para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre e, por isso estou sofrendo estas cousas; todavia não me envergonho, porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia” (2Tm 1. 8-12)
Trata-se da ênfase em anunciar o Evangelho do Senhor Jesus, onde Deus, pelo anúncio do Senhor Jesus, estende salvação não pelas obras, mas pela graça mediante a fé para toda criatura: “Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus.” (1Tm 1.14). “Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem...” (1Tm 2.3-5). Paulo rompeu com a idéia de certos grupos judeus de que a salvação era pelas obras da lei, e somente para alguns.
Daí é que, entre os elementos que caracterizaram a Reforma Luterana estão às afirmações Somente a graça, Somente a fé e Somente as Escrituras Sagradas. Essas afirmações visavam a derrubar alguns pressupostos da Igreja de Roma. (cf. Ef 2. 8-9).
Somente a graça: a salvação não pode ser comprada, não há indulgência ou perdão de pecados concedidos pela Igreja, por mais graves que sejam, que possam abolir o pecado e garantir a salvação, a bênção de Deus, pois estas são fruto da abundante graça de Deus. Isso segue sendo verdade: hoje não se fala em comprar salvação, mas se fala que a bênção de Deus, a graça de Deus será mais facilmente alcançada com boas ofertas, e isso não só na Igreja Católica, a qual não nos admira por ser parte de sua concepção teológica. Mas em muitas Igrejas tidas como Evangélicas, onde se estabelece uma visível relação entre bênção e grandes ofertas, o que com certeza é um desvio da sã doutrina.
Somente a fé: a salvação, as bênçãos de Deus, não nos vem por meio das nossas obras. As obras para nós, são consequência do amor de Jesus, derramado em nossos corações. A salvação e as consequentes bênçãos de Deus nos vêm pela graça de Deus, mediante a fé nos méritos da paixão e morte de Jesus Cristo, através do qual somos feitos filhos de Deus. Assim, a fé é o meio pelo qual nós respondemos à graça e ao amor de Deus. Nunca as obras podem ser meio de salvação; deste modo, do contrário a salvação não seria pela graça, e o sacrifício de Cristo não nos purificaria dos pecados, não haveria necessidade de arrependimento e nem do perdão, já que a salvação me seria devida, por eu ter feito boas obras. Muito do ativismo que temos na Igreja esconde uma tentativa de sufocar culpas e pecados. Tenho visto pessoas em pecado darem grandes ofertas ou tentarem assumir grandes tarefas, numa iniludível tentativa de obter perdão, atenuar culpa, através de obras, o que sem dúvida foge à sã doutrina.
Somente as Escrituras: Este princípio, assim como os anteriores, foi muito sublinhado pelo Apóstolo Paulo, e bastante acolhido por Lutero. Na verdade, Paulo é claro quando ensina Timóteo: “...e que, desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tm 3.15). Lutero retorna às Escrituras e as coloca no centro, como única base revelada dos propósitos de Deus, deixando de lado o magistério e a tradição da Igreja. Ele deixou claro isso quando sublinhou que não voltaria atrás em suas teses, a não ser que lhe provassem pelas Escrituras que ele estava errado.
No caso de nós metodistas, tomamos o ensino de Wesley, que repete, de certo modo, Lutero, como está no 5º Artigo da Religião que João Wesley nos deixou: (5) Da suficiência das Santas Escrituras para a salvação: “As Santas Escrituras contêm tudo que é necessário para a salvação, de maneira que o que nelas não se encontre, nem por elas se possa provar , não se deve exigir de pessoa alguma para ser crido como artigo de fé, nem se deve julgar necessário para a salvação. Entende-se por Santas Escrituras os livros canônicos do Antigo e do Novo Testamentos de cuja autoridade nunca se duvidou na Igreja”.(Cânones).
Wesley, querendo sublinhar a importância da Bíblia, para descobrir Cristo e a Salvação, disse: “Eu não tenho receio de revelar os meus pensamentos mais íntimos aos homens sinceros e sensatos. Eu tenho pensado que sou uma criatura de um dia, passando pela vida como uma flecha através do ar. Sou um espírito vindo de Deus e que para ele voltará; espírito apenas pairando sobre o grande abismo, até que daqui a uns poucos momentos eu não seja mais visto e entre numa eternidade imutável! Quero saber uma coisa – o caminho para o céu; como desembarcar-me com segurança naquela praia feliz. O próprio Deus condescendeu em ensinar o caminho; para este fim, ele veio do céu. Ele o escreveu em um livro. Oh! Dá-me esse livro! Por qualquer preço, dá-me o livro de Deus! Eu o tenho. Aqui há conhecimento suficiente para mim. Seja eu o homem de um livro. De modo que estou distante dos costumes atarefados dos homens. Eu me assento a sós: somente Deus está aqui. Em sua presença abro e leio o seu livro; para este fim achar o caminho do céu. Há alguma dúvida a respeito do significado daquilo que leio? Parece alguma coisa difícil ou intricada? Ergo o meu coração ao Pai das luzes: “Senhor, não é a tua palavra, se alguém necessita de sabedoria peça a Deus”? Tu dás liberalmente e não lanças em rosto. Tu disseste: se alguém quiser fazer a tua vontade, ele a conhecerá. “Eu quero fazê-la, dá que eu conheça a tua vontade.” Eu então pesquiso e considero as passagens paralelas das Escrituras, “comparando as coisas espirituais com as espirituais.” E então medito com toda a atenção e sinceridade de que é capaz a minha mente. Se ainda persiste alguma dúvida, consulto aqueles que são experimentados nas coisas de Deus e, então, os escritos que estavam quase mortos, ainda falam. E o que assim aprendo, isso ensino. – Prefácio aos Sermões, 5 (S, 1, 31-32).
Que graça e misericórdia procedente do Deus revelado em Jesus Cristo nas Escrituras Sagradas dirija e ilumine nossa caminhada e de sua Igreja. Amém.
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